Tenho
participado de bancas avaliadoras de concursos literários e uma das questões
mais delicadas com as quais estamos tratando é a suposta intervenção de
inteligências artificiais nos textos submetidos ao júri. Antes era o plágio
(que, acreditem, ainda é uma questão recorrente nas bancas), mas o plágio é um
crime previsto no Código Penal e, embora muitos não o encarem com a devida
gravidade por ignorância ou pura falta de honestidade, é um contratempo
relativamente fácil de lidar: comprovado o plágio, a desclassificação de um
texto estaria fundamentalmente embasada e o recurso seria apenas uma
alternativa vexaminosa ao plagiário, tendo em vista o critério de originalidade
da maioria dos editais.
O problema da inteligência artificial, no entanto,
é um pouco mais sorrateiro: ainda quando previsto em edital (e a maioria dos
regimentos legais já tem incluído cláusulas que versam especificamente do
tema), seu uso ainda não pode ser inteiramente comprovado pois grande parte dos
verificadores não é cem por cento confiável. Isso ocorre porque ferramentas de
detecção do uso de inteligência artifical como o ZeroGPT buscam padrões de
linguagem de uma tecnologia cujo propósito, em sua essência, é emular a cognição
humana, reproduzindo alguns vícios que são também maneirismos de escritores
menos habilidosos, como a superficialidade, o excesso de adjetivação e o
formalismo de um linguajar de gabinete, cheio de jargões e lugares comuns.
A inteligência artificial é sem dúvida
revolucionária, mas lembremos que ela ainda está em sua infância: a depender
dos comandos, seu sarrafo não será muito alto quando o quesito é o estilo (isso
que Hemingway chamava de “atrapalhamento da escrita”: algo difícil de se imitar
sem parecer uma fraude, mesmo entre nós humanos). Na prática, se você não
seguir os prompts adequados, a inteligência artificial ainda
vai se comportar como um escritor frágil tecnicamente, dotado de metáforas
pouco inventivas e frases repletas de impessoalidade. Se você tiver o mínimo de
habilidade, no entanto, é muito fácil manipular a base de um texto fornecido
pelo ChatGPT e transformá-lo em algo decente, apresentável. Vai ganhar o
concurso? Talvez não. Mas vai enganar os jurados, e dar uma baita trabalheira à
banca.
Isso levanta um ponto de inflexão interessante que
outras artes como a pintura, a música e o cinema enfrentaram muito antes da
literatura, quando foram desafiadas por tecnologias como a fotografia ou
o streaming, conseguindo se reinventar e em certa medida até
evoluir a partir do impacto disruptivo causado pelas novidades, subvertendo-as
ou incorporando-as aos seus protocolos artísticos. Saindo do âmbito dos
concursos literários e partindo para o da pesquisa acadêmica, por exemplo, a
Associação Brasileira de Normas Técnicas (a famigerada ABNT) já lançou uma
norma que tenta estabelecer diretrizes para uso da inteligência artificial em
trabalhos científicos. Em termos processuais, tenho colegas escritores que até
advogam em favor da inteligência artifical, utilizando-a para furar o bloqueio
criativo e esboçar uma cena quando ela foge aos seus domínios, pautando uma
geografia que desconhecem ou especificidades com as quais não estão
familiarizados.
Não sei se isso é muito diferente de uma pesquisa
de campo ou de uma consulta a uma enciclopédia, ou mesmo às perguntas que nós,
escritores ou não, fazemos cotidianamente ao Google. Alguns dirão que sim,
porque as respostas já vêm formuladas em texto. Outros dirão que não, que a
criatividade está em contorcer esse texto, torná-lo literatura. Como todas as
controvérsias que atravessam a arte da ficção, sou capaz de compreender ambos
os lados, mesmo não concordando necessariamente com eles. Ao fim e ao cabo, não
é mais uma questão de se colocar contra ou a favor da inteligência artificial:
ela está aí e só tende a se desenvolver, e é preciso aprender a lidar com as
sinucas de bico que ela está nos colocando.
Porque a ficção não seria maior que a realidade,
sobretudo para nós escritores, se não tratasse diretamente das vidas que nos
propomos a narrar: e pode parecer impensável para nós que as preocupações do
Sindicato de Atores de Hollywood lá fora sejam as mesmas que a de nós, pobres
mortais mal empregados e mal pagos; mas sim, elas estão começando a se tornar
as mesmas. Dizem que você não será substituído pela inteligência artificial, e
sim por alguém que sabe usá-la melhor do que você. A questão é que, no contexto
predatório do capitalismo, não será numa proporção de um para um, mas de um
para vários. E esse um não vai hesitar em utilizá-la, também, para fins
escusos.
Quiçá a solução do impasse inicial desta crônica
seja justamente esta: uma banca de inteligências artificiais, julgando textos
produzidos dentro de suas plataformas.
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